quinta-feira, 15 de janeiro de 2015

Na cidade dos amantes (lado A)

 Salvo engano,..., havia um artigo na revista HMagazine a respeito de uma galeria em Paris com obras apenas de teor homoeróticas. Decidi que este seria o primeiro lugar a visitar na cidade, já que ainda não havia conhecido nenhum outro espaço que fosse dito especializado no assunto.
 Chuviscava um pouco e por isso andava com um lenço que me servia pra proteger da chuva, qual possuía estes desenhos de característica árabe. Já em frente à galeria, fiquei encantado com a porção de obras, desenhos, pinturas, fotografias e esculturas que se apresentavam na vitrine, sendo que parte destes objetos me interessavam unicamente pelo seu tema. Tomei meu caderno e passei a anotar alguns nomes.

 Certifiquei-me de estar no horário estipulado para visitas na informação prostrada junto à porta. Tudo certo, adentrei. Reconheci a senhora que estampava um doce sorriso na revista (e que tinha em mãos para mostrá-la), quem repentinamente começou a latir como um cão raivoso enquanto eu observava algum pequeno desenho. 'Me veio a imagem de inúmeros filmes franceses com estas cenas em que personagens ficam aos berros discutindo. Sucedeu-se uma série de frases perturbadas que - pela sua agressividade, não havia como não entender em partes: ISSO AQUI NÃO É UM MUSEU! SAIA! VOCÊ NÃO É BEM-VINDO! Num texto longuíssimo que não apenas pela sua histeria assim como a aproximação da mulher, ficou claro que era dirigido a mim. Entre os gritos, um senhor se aproximava me empurrando para fora com pequenos socos no ar, ao mesmo tempo em que se afastava. Meu coração parecia que ia saltar pela boca: fiquei assustado pacas! Meu francês sairia miúdo diante de tanto terrorismo e nada me vinha à cabeça. Saí pela mesma porta que entrei.

 Do lado de fora, retornei o olhar - ainda sem entender - ao senhor de pentelhos brancos que fez um sinal de "vai tomar no cu" com o braço. Uma sensação de imbróglio se formou dentro de mim e a única coisa a fazer para jogar aquilo fora era andar. Andar, andar, andar. Naquela beleza afora havia de ter algo para este coração sub-tropical. Caminhei como se vomitasse pela cidade o que inesperadamente absorvi.

 Somei a primeira sensação de admiração ao chegar no centro da Cidade Luz: era tudo como se dizia! Incrivelmente fantástico!; com a sensação da chegada ao bairro em que iria ficar: era absolutamente tudo o que faziam questão de esconder/abnegar. Entre um bairro pobre, vendedores de rua, vagabundos, prostitutas, mercadinhos, lixos espalhados, lixos industriais baratos com perfil de marca,..., impossível não me pensar/colocar naquele lugar tamanha sua exclusão: como suportar viver num espaço e não ter voz alguma? Não ser dito, visto ou identificado?

 A cachola passou a funcionar e lembrei de questões que, por interesse próprio, volta e meia circulavam. Um estalo: a proibição de lenços islâmicos nas escolas (e a possível proibição de seu uso em sociedade que circulava naquela época). Questões decorrentes*, costumes e censuras ao que era considerado ou menor, culturamente inferior ou problematicamente fanático. Muito disso posto num mesmo balaio erroneamente.

 Identifiquei!!! Meu problema foi o lenço: ainda que no pescoço, ainda que tão pequeno. Para o bom convívio e respeito com todos, era imperativo não usá-lo. A liberdade estava traçada: pode apenas o que se convém como "meu", "unicamente meu", e que "me" traz segurança.

 Nas andanças, devo agradecer a injeção de ânimo dada na conversa com Allistair. Eu fotografava de longe um monumento gigantesco e fálico que encontrei num labirinto de ruas. Tomei o mapa nas mãos para me localizar, e, do outro lado, ele fotografava em minha direção. Atravessai a rua lhe dizendo, no que me dirigiu o olhar:
- Desculpe, estava atrapalhando sua foto.
- Na verdade, eu queria tirar uma foto sua no lugar onde vc estava.

 Disso, ficamos conversando sobre diversos assuntos, me fazendo uma série de confissões sobre seu desconhecimento da cidade (e que havia resolvido sair para conhecer e fotografar seu lugar); do conservadorismo; sobre o bairro onde eu estava e afins. Foi um presente. Tomei e comi toda a atenção e provocação que aquele belo rapaz francês me deu. Depois de uma hora, ele olhou para o relógio e se foi. Mandou uma mensagem falando para nos encontrarmos... não aconteceu.
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  Foi aí que levei um susto nesta semana passada: de repente tantos se chamavam Charlie. Li um pouco e me incomodou profundamente a mistura e jogos de pensamentos (políticos) fingindo defender a "liberdade de expressão". Fraternidade "para os meus". Liberdade "para os meus". Igualdade "para os meus". Assim eternamente. Da esquerda até a extrema direita, dos pensadores aos conservadores. Apenas precisando de mais alguns corpos para fundamentar o injustificável.

 Quase vomitei as próprias tripas, pois já não havia me sobrado nada mais daquele fanatismo enfiado goela abaixo pela galerista. Líderes censuradores da imprensa, cultura e política reunidos defendendo a liberdade de expressão. Faz sentido!

 Salvo pelo jovem francês. Salvo pelo amor que flanea nas ruas. Salvo pelo que não pode ser capturado/censurado.



fotos de Claudio Senra, ilustrando o uso do lenço por Veneza.















http://operamundi.uol.com.br/conteudo/entrevistas/38821/islamofobia+virou+ideologia+rotineira+na+franca+analisa+autor+de+livro+sobre+muculmanos.shtml

* Demoramos muito, mas, finalmente, o Estado francês reconheceu sua responsabilidade no massacre dos judeus, acabando com o antissemitismo histórico. Hoje uma pessoa pode ser judia e francesa, não é mais visto como uma contradição. No entanto, nunca resolvemos a questão colonial, com a dominação que a acompanha, e a percepção de ter uma cultura e uma civilização superiores. Para os franceses, pessoas que vêm de África ou do mundo árabe devem borrar todas as suas especificidades para se integrar à sociedade, como se a identidade francesa fosse uma norma única que deva ser copiada. Aliás, acho que é um problema de cultura política: desde a monarquia absoluta de Louis XIV, passando por Louis-Napoléon Bonaparte até o sistema presidencial atual, a França tem um problema com a diversidade e a pluralidade.

* EP: Na mídia, este papo começou em 1989, quando o maior semanário da esquerda, “Le Nouvel Observateur”, publicou uma capa contra o uso do lenços islâmicos nas escolas. Depois disso, em 2004 foi votada uma lei (com a unanimidade da direita e da esquerda!) proibindo a entrada nas escolas das meninas usando lenços. Isso provocou o afastamento de muitas alunas. E, desde 2011, existe uma circular do Ministério da Educação nacional recomendando a exclusão das mães usando lenços nas portas das escolas, na rua mesmo. Vocês percebem o absurdo? Há 25 anos que a França enfrenta problemas democráticos, econômicos, sociais, ecológicos, e durante todo este tempo, os intelectuais consideram que o verdadeiro tema é a proteção do Estado laico. Isso já não mais laicidade, é “laicismo”, ou seja, um tipo de integralismo.

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