domingo, 10 de maio de 2015

Drops de Elis III - Hermeto & Elis

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 No meio da gritaria, Claude Nobs chamou de volta à cena Hermeto Pascoal, que assistiu a todo o show de Elis na coxia. Recebido com espetacular ovação, o bruxo albino se encaminhou vitorioso para o piano enquanto, de surpresa, Claude chamava de volta Elis Regina! Sempre altamente competitiva, Elis sabia que tinha perdido a noite para Hermeto. Frustrada e furiosa, entrou no palco pisando duro e sorrindo tensa para o público. Silêncio total, piano e voz. Hermeto começa a tocar "Corcovado" e quando Elis começa a cantar suas harmonias começam a se transformar, dissonâncias surpreendentes começam a brotar do piano, é cada vez mais difícil para Elis - ou para qualquer cantor do mundo - se manter dentro da mesma tonalidade, tantas e tão sofisticadas são as transformações que Hermeto impõe, tornando o velho clássico quase irreconhecível, genialmente irreconhecível. E Elis lá, respondendo a todos os saques do bruxo com uma precisão que o espantava e o fazia mudar ainda mais os rumos de uma canção não ensaiada. Na corda bamba e sem rede, Elis cantava como uma bailarina, como uma guerreiro, como um músico. Hermeto arregalava seus olhos vermelhos atrás dos óculos. Elis crescia a cada nota, à cada frase de seus improvisos e scats, a cada compasso de seu duelo com Hermeto. Foram delirantemente aplaudidos. Quando Hermeto começou a tocar "Garota de Ipanema" (que Elis odiava e jurava que jamais cantaria em sua vida) ela baqueou. Mas logo se recuperou e cantou, com todo vigor, como se fosse a última música de sua vida, virou a música pelo avesso, cantou uma vez toda em inglês, com sotaque perfeito, imitando uma menininha dengosa, rindo e debochando, provocou Hermeto, voou com ele diante da platéia eletrizada. Com o público de pé, "Asa Branca", Elis e Hermeto no round final, o baião de Luiz Gonzaga em ambiente free-jazz e atonal, harmonias jamais sonhadas se cruzando com fraseados audaciosos de Elis, trocas bruscas de ritmo e andamento, propostas e respostas, tiros cruzados, arte musical de altíssimo nível protagonizada por dois virtuoses.(...)
Nelson Motta, 2001

Esta é a versão de Nelson para o ocorrido em Montreux. Como particularmente eu havia escutado primeiro a entrevista que a cantora dera para Walter Silva (em sua casa após os shows fora do Brasil, no Alto da Cantareira, "uma casa acolhedora e muito simples com um bom gosto incrível", segundo o entrevistador), eu fiquei com uma impressão completamente diferente do ocorrido, somado aos próprios vídeos do evento. Nesta entrevista, Elis não nega o lançamento do disco (mencionando-o inclusive*), falando também sobre o seu nervosismo no princípio da apresentação. Mas diz que logo seguido aos aplausos percebeu que tinha o público em sua mão e mandou bala (nervosismo este por estar naquele lugar, naquele palco, onde pisara tantos ícones, sendo ela filha de lavadeira e pai operário).

 Hermeto teve de desmentir esta história tantas outras vezes mais. "Muitos dizem que eu queria derrubar a Elis. Mas seu eu tivesse feito qualquer coisa mal intencionada, ela sairia do palco".  Elis (na entrevista ao Pica-Pau) também menciona a dificuldade dos tradutores compreenderem a forma como o Bruxo se expressava (a fim de traduzir para a língua japonesa, por exemplo), e que junto a César (salvo engano) interviram algumas vezes para que não parecesse que Hermeto estava tendo uma atitude jocosa. Isto é: amizade e respeito não parecem ter faltado naqueles encontros.

 No documentário feito para a exposição itinerante de Elis em 2012 (qual foi prometido lançamento, não esqueçamos), Hermeto revelou que algumas pessoas não compreendem a maneira dele tocar,buscar acordes, notas, sons e por isso, pensam que ele quis derrubar Elis no tal "duelo". Para o livro que foi gerado através dessas entrevistas, ele disse:

 Nós fomos pegos de surpresa. Eu e a Elis ficamos no fogo. Aí veio o respeito, meu e da Elis, para com o público. A gente esqueceu de qualquer outra coisa. Eu nunca tinha tocado com ela. Fomos lá, entramos e quebramos tudo. Foi uma dádiva, um negócio que eu agradeço até hoje a Deus. Foi Deus quem colocou a gente para eu me despedir dela. Para isso, quando ela canta "Asa Branca", ela diz um verso "Adeus, Hermeto, guarde consigo todo meu coração". Houve coisas ditas por aí, em entrevistas. Alguns acharam que tentei derrubar a Elis Regina. Há pessoas que acham que improvisação é premeditação. Mas já tem o nome certo: é você esperar, ouvir e tocar. Foi tudo de improviso. Até o encontro da gente. Tem hora que faço uma harmonia diferente. Sempre faço coisas diferentes, mudo a harmonia e tudo. E a Elis deu um show de musicalidade. Para ela, foi surpresa também. Eu procurava os acordes, e ela esperava eu ajeitar a sequência de acordes... e ela pegava legal, na hora certa. Foi um banho. Ficou no livro de Deus. Tem muita coisa distorcida sobre isso. Ninguém fez um som com ela, no mundo, como eu fiz. E sem ensaiar com ela. E o que acontecei comigo e a Elis só teve um ser que sabia que ia acontecer: Deus! Ninguém na Terra sabia.Nem ela, nem eu.
Hermeto Pascoal, em Viva Elis.

 Este episódio é um dos que mais me encanta na carreira de Elis. Primeiro pelo fato de eu ter ouvido esse show sem as impressões de Midani-Motta, percebendo que sim, é um putadisco e Elis está deslumbrante nele! As versões (tarde e noite) de Cobra Criada, Cai Dentro, Madalena, o espetáculo do Medley Ponta de Areia+Fé Cega Faca Amolada+Maria Maria (e a incorporação de Elis aos batuques da percussão), Upa Neguinho, etc. Até mesmo a guitarra falhando em Corrida de Jangada acho uma delícia. Fato este que serve para repensar o tão mencionado perfeccionismo da cantora, sendo que modelos de imperfeição não faltam em áudios. Tanto por parte da mesma que errou afinação em algum momento, letras de canções ou seus músicos. Mas esta aqui chamada "imperfeição", de modo algum diminui a arte ou agride os ouvidos. Muito pelo contrário: mostra a busca, o processo, o desejo de chegar a lugares onde poucos tem coragem de ir.
 É claro que tem canções neste especial onde se percebe os problemas (exemplo de Samba Dobrado), mas em nada prejudica a audição.
 Segundo lugar, me encanta pq mostra como muita coisa foi/é dita de forma a querer criar polêmicas, picuinhas entre artistas e coisas afins. Hermeto e Elis são dois gênios, semi-deuses da nossa arte,..., e querer olhar e pensá-los vulgarmente, é no mínimo inocente. E ter estado na presença de ambos, não significa guardar a verdade destes momentos pra si, acima do entendimento dos mesmos.



Entrevista 




Porque ela não queria, porque tirando os números com Hermeto, ela achava que o resto não valia a pena, não tinha cantado bem. Achava que tinha chutado um pênalti para fora. De volta ao Brasil exigiu de André umjuramento de que nunca lançaria aquela gravação, nunca, nem depois que ela morresse.




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